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Rosangela Aguiar é administradora do Presídio Estadual de Sarandi


Rosangela Martins de Aguiar é formada em Direito e desde 2015 é administradora do Presídio Estadual de Sarandi, no Rio Grande do Sul. Há 15 anos é agente penitenciária da SUSEPE e entre os anos 2011 e 2012 participou dos cursos de Fundamentos e Práticas de Justiça Restaurativa oferecidos pelo CDHEP, em parceria com a Pastoral Carcerária.Também participou da formação sobre Processos Circulares com Kay Pranis.

CDHEP: O que mudou para você após conhecer a Justiça Restaurativa?

Rosangela: Passei a entender que todo mundo é agressor e é vítima. A partir do curso eu comecei a ver que cada um tem uma história, tanto eu, agente penitenciário, quanto os presos. Na verdade, eu não conhecia outra possibilidade. Eu achava que eles – os presos – somente entendiam a linguagem da violência. E que era preciso falar a língua deles para ser compreendida. Depois de fazer a formação eu descobri que era possível desconstruir isso. Eu levo este curso para toda a minha vida, muito mais do que para meu trabalho. Consegui enxergar o outro com toda sua história, e com isso me tornei muito mais compreensiva e mais complacente. Eu sempre fui muito brava, mas mudei e hoje é muito difícil me verem brava. Recentemente tivemos uma fuga e depois a Brigada Militar trouxe a pessoa de volta. Ele chegou e foi para a minha sala, eu fiquei olhando para ele todo machucado, eu poderia ficar com ódio dele, mas fui chamar a enfermeira e pedi para medicá-lo. Eu disse para ele: a diferença entre nós dois é que eu penso nas consequências do que faço e você não. O que ele fez é totalmente inconsequente e errado. Ele tentou justificar que estava com saudade da filha que não via há muito tempo, e então me lembrei que todo mundo tem sua história, ele tem a dele e não posso ter raiva disso. Não consigo nem explicar o quanto mudei. As pessoas que me conhecem percebem. Eu me lembro do curso quase todo. Lembro de minhas falas, e daí percebo como mudei depois disso.

O curso deu sentido para meu trabalho, pois eu tinha uma frustração muito grande de fazer este trabalho cruel. Como exercício de ódio, o que era. O ódio para com os presos, ver os presos como inimigos. Com os colegas de trabalho, tinha sempre uma relação de disputa. A partir da ESPERE eu consegui ver que posso fazer coisas positivas, mesmo neste ambiente hostil. Isso me motivou por toda a minha vida e tirou de mim aquela frustração que sentia, de que eu era uma pessoa que fazia o mal, que mantinha pessoas presas, mesmo com uma justificativa legal. Agora eu consigo ver o meu trabalho com outra perspectiva.

CDHEP: Qual é o entendimento que você tem sobre sua função hoje?

Rosangela: Eu entendo que meu papel é mostrar que as pessoas privadas de liberdade podem ter outra linguagem daquela que eu via anterior ao curso. Eles não precisam usar a linguagem da violência. Com os cursos que aplicamos aqui no presídio, percebemos que as pessoas também ficam surpresas por descobrir que existe uma nova maneira de lidar com isso. Para mim, meu papel é este, ou seja, ressocializar o que se objetiva com a execução penal. Que possam descobrir uma forma de convivência sem violência. Acredito que deveria ser este o papel de todos os servidores penitenciários. Isso seria a forma de trabalhar melhor não para o sistema prisional, mas melhor para a sociedade. Às vezes a gente se foca muito no sistema, e esquecemos que a vida está muito além disso. Sou abolicionista da Justiça Restaurativa desde quando fiz o curso. Não acredito na pena como meio de ressocialização. Mas, juridicamente é este o contexto da sociedade que vivemos. Às vezes recebo críticas de colegas do meio jurídico que são abolicionistas e dizem que não se deve fazer nada para melhorar a prisão. Eu digo que não adianta eu ficar com meus ideais enquanto as pessoas estão sofrendo. Seria muito hipócrita eu dizer isso, ou dizer enquanto administradora que não vou mais criar vagas por que eu não acredito nisso, enquanto as pessoas estão vivendo confinadas, numa situação degradante, porque eu quero ser coerente com meu ideal.

Minha decisão para trazer o curso de Fundamentos de Justiça Restaurativa na versão da ESPERE para esta unidade existe desde 2011. Fiquei encantada, pensei “isso tem que acontecer com os presos e com os servidores também”. Desde aquela época, eu sei também que não adianta fazer milhões de ações positivas para os presos se os servidores não estiverem inseridos nisso. Principalmente o que envolve este método de resolução de conflito que seja pacífico. Não adianta o preso ser preparado para esta metodologia e o servidor não. Desde então eu tenho tentado, organizei projetos, tive várias tentativas, mas sempre teve uma ou outra circunstância que não permitia. Fui trabalhar no presídio de Arroio dos Ratos, onde nós começamos com cursos para os servidores, mas não foi muito adiante e eu saí de lá. Mas soube que aconteceram círculos de paz com os presos. Fiquei trabalhando uns tempos em Porto Alegre, sempre ficava nisso e sempre esperava por algo, imaginando que se eu assumir a administração vai ser com Justiça Restaurativa. Quando assumi aqui já tinha isso em mente, sem saber muito como realizar. Mas, a visita da Ir Imelda Jacoby, coordenadora da Pastoral Carcerária no Rio Grande do Sul e, a posterior capacitação que foi um reforço para quem havia feito os cursos, começamos a dar a formação dentro do presídio. Minha idéia é oferecer esta formação a todos os presos e a todos os servidores também. Quero oferecer a todos os funcionários a possibilidade de participar dos cursos. Acredito que quando todos fizerem a formação vamos sentir os resultados.

CDHEP: Como você aplica as práticas da Justiça Restaurativa em seu dia a dia?

Rosangela: Os círculos restaurativos são mais fáceis de aplicar do que o círculo vítima-ofensor. Com as pessoas que tiveram a formação em Fundamentos nós fizemos alguns outros círculos do livro da Kay Pranis mesmo. Fugindo um pouco do protocolo das práticas, tivemos casos de presos que brigaram. Eu conversei com um, conversei com outro, disseram que queriam conversar. Trouxe os dois, eles conversaram e se entenderam. Tinha o procedimento administrativo no qual eu coloquei que teve este encontro, que existia a vontade de se perdoar e ai eu opinei para não impor uma sanção disciplinar. Eles conseguiram se entender e realmente não brigaram mais. Mesmo sem a formalidade do círculo, essa conciliação teve a ideia da restauração e do perdão. Como administradora do presídio tenho a autoridade de fazer parar este tipo de procedimento, impedindo que isso vá para o judiciário. Aqui temos uma média de cinco procedimentos, não de violência, mas de fugas por mês. Temos poucos casos de violência, como o caso que citei anteriormente.

CDHEP: Quais são as possibilidades dentro da política prisional, com as ferramentas que você tem hoje em relação à Justiça Restaurativa? 

Rosangela: Eu acredito que a combinação da Justiça Restaurativa com a ESPERE é a solução e a resposta para a violência e a criminalidade. Isso porque ela atinge todos os aspectos e todas as dificuldades que temos. Permite resolver problemas e questões que fizeram os ofensores chegarem no presídio que, via de regra, são ocasionados por problemas familiares. Digo sempre que a instituição prisional só existe por que todas as outras instituições falharam, a começar pela família. Acho que 100% dos que vem para o sistema prisional tem falhas na instituição familiar. Eu acredito que esta formação atinge todos os níveis. Ajuda, inclusive, na família e no convívio social. Depois que já estão no presídio nossa alternativa é ajudá-los a lidar e suportar este período, com todas as adversidades e oferecer a oportunidade de mudarem suas atitudes. A formação em Fundamentos JR – ESPERE deveria acontecer na entrada do presídio. Por isso eu penso em investir nesta formação, para que todos já passem por esta experiência logo no início. A expectativa é a redução da reincidência. De tudo que eu conheço no sistema prisional, acredito que esta formação é a única que pode garantir a diminuição da reincidência.

CDHEP: Se você pudesse, o que mudaria no sistema prisional com as práticas que você conhece hoje?

Rosangela: Se eu tivesse poder, eu iria descriminalizar as drogas e regulamentar o comércio para acabar com o tráfico, por que isso seria uma medida importante para acabar com a superlotação das prisões. Em relação ao processo formativo, se tivéssemos condições eu acredito que as pessoas deveriam fazer os Fundamentos JR -ESPERE antes de serem condenadas. E, depois, fazer os círculos vítima-ofensor, e então, se isso não der resultado, ai se pensaria em condenação. Todas as cidades deveriam ter um Núcleo de Justiça Restaurativa, e as audiências de custódias poderiam ajudar nisso, talvez no modelo com o que se faz com os adolescentes e para alguns tipos de crime. Talvez se pudesse fazer uma seleção de crimes que poderiam ser trabalhados com este atendimento, como por exemplo, a violência doméstica, que é um crime que na primeira infração não há condenação. Seria necessário uma parceria com a Delegacia de Polícia que poderia encaminhar a pessoa para o Núcleo de Justiça Restaurativa já na primeira ocorrência. Também uma parceria junto com o Centro de Referência de Assistência Social – CRAS, dentro da política social do Município. E inserir esta formação dentro do sistema educacional também é essencial, pois precisamos educar para a paz.

Entrevista realizada em março de 2016.

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