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Victor Barão é psicanalista e membro do coletivo Margens Clínicas


Victor Barão é psicanalista, membro do coletivo Margens Clínicas e mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo, além de formador e pesquisador do campo da Justiça Restaurativa desde 2011. Formou-se em psicologia em 2009, realizou os cursos de Fundamentos e Práticas de Justiça Restaurativa em 2010. Chegou ao CDHEP através de um estágio na graduação, para pensar o lugar da psicanálise junto aos Direitos Humanos. Para Victor, a clínica psicanalítica situa-se no debate da violência política, algo que nem sempre parece estar presente na psicanálise, dentro e fora do consultório, mas que é fundamental no pensar a justiça, a cidadania e a democracia.

CDHEP: O que é para você Justiça Restaurativa?

Victor: Antes de fazer a formação, eu não conhecia o termo, mas conhecia a dimensão hegemônica do Direito e da justiça retributiva. Com minha formação em psicologia, eu sentia um desejo intrínseco pela prática da justiça, com base no Direito Positivo. Mas eu não problematizava isso, ainda que fosse contrário e me indignasse com nossa justiça penal, por notar sua seletividade, seu corte racial e socioeconômico. Eu entendia esse desvio como um problema sistêmico e assim acreditava que a prisão seria justa quando superássemos o capitalismo, isto é, a ideia de que a exploração do trabalho é a forma mais eficaz de progresso e desenvolvimento civilizatório. Hoje já entendo que a prisão e a repressão são instrumentos que sustentam (parte) os grupos historicamente privilegiados. Porém quando fui apresentado à Justiça Restaurativa – e eu prefiro o uso Instaurativa – fiquei bastante exultante e excitado. Um novo campo de linguagem e política se abria para mim, mesmo porque, naquele momento, o antigo conceito de perdão já me havia sido desconstruído e ressignificado. Isso foi incrível, pois eu podia vislumbrar uma justiça dinâmica, participativa e capaz de se reinventar. Penso que o mesmo se opera com qualquer aquisição de linguagem. Somos seres prenhes dela. Já viram o vídeo de um pai, diante da sua bebê, soletrando o nome dela em libras? Tem efeito semelhante, um desconforto sem nome que busca na presença do outro encontrar um símbolo de alívio e continência possível. Aquela bebê tenta logo imitar seu pai, encaminhando sua angústia para um escoamento mais refinado que o choro: a palavra.

CDHEP: O que entendia por perdão antes e depois da formação em Justiça Restaurativa?

Victor: Antes da formação, o contato que tinha com o signo perdão fora privilegiadamente construído por ensinamentos espíritas – com destaque para o kardecista – dos meus pais e avó materna. Como meus pais e a oração do Pai Nosso ensinavam, era preciso perdoar para sermos também perdoados. Eu sentia raiva do termo e esse sentimento de raiva vinha justamente, e hoje penso, da falta de recursos e instrumentos subjetivos para praticar ou exercitar o perdão diante das injustiças que sofria. Eu não conhecia uma linguagem do perdão, só pude desenvolvê-la nessas formações. Era como se me dissessem: “você precisa falar polonês!”, e eu pensava: “mas do que diabos vocês estão falando? Que é isso, polonês? Só ouço balbucios! Quem realmente fala essa língua e pode me ensinar?” Eu não sabia, mesmo aqueles ensinamentos cristãos me pareciam cifrados e performaticamente impossíveis de serem reproduzidos/praticados na vida real. Então, para mim, perdão virou um fetiche, uma insana fixação religiosa de meus pais e, depois, humana, que idolatrava uma língua que não conseguiam falar nem ensinar, mas bem me faziam soterrar as experiências violentas na minha própria solidão traumática, com o plus de me ver profundamente culpado por não ser capaz de obter alívio algum com o  falar perdão. Afinal, falar é obter um alívio transitório nos símbolos, o seguro possível enquanto forem símbolos. Pois eu passei a sentir raiva do termo e, consequentemente, da forma como discursos religiosos faziam uso instrumental dele. Após a formação em Fundamentos de Justiça Restaurativa, que é orientada pelo trabalho da Escola do Perdão e Reconciliação, eu entendi porque sentia raiva de meu antigo conceito de Perdão: eu havia “entregue” a língua-perdão ao campo do sagrado, sem perceber que isso roubava de mim um avanço linguístico. Tal como aprender operações matemáticas básicas, a correção desse equívoco é tão fundamental para se alcançar um perdão genuíno quanto foi subversivo para Jesus de Nazaré tornar o perdão um ato político. Isso está em A Condição Humana, da filósofa judaica Hannah Arendt. A ideia de que a língua-perdão é algo do campo do sagrado funda instituições religiosas secularizadas até hoje, o judiciário inclusive.

CDHEP: Por que se engajou no processo a ponto de aprofundar-se na teoria que o orienta e levá-lo para sua vida profissional?

Victor: Por uma razão bastante simples. Eu percebi que, assim como a psicanálise em relação à psicologia, também a Justiça Restaurativa se mostra mais radical que a justiça comum em seus princípios, dialetizando o sentido de alcançar as causas do evento danoso, afastando-se do paradigma punitivo, e assim propiciando mudanças mais profundas em toda uma comunidade envolvida. Quando você prende uma pessoa, não é só ela que vai para a cadeia, também vão pessoas que não participaram do evento danoso, como parentes, filhos pequenos, avós, vizinhos; Essas pessoas também são punidas com a retirada forçada de uma pessoa do seu lugar. Adianto que, para a psicanálise, não deve existir punição para menos que seis pessoas. Isso porque não é possível isolar o ser humano, pois ser humano é pertencer à partilha simbólica. Não há humanidade fora de um pacto civilizatório. Sim, há responsabilidades individuais sempre, mas me poupem dessa digressão, porque, ao promover o isolamento físico de um frente às rupturas no tecido social, o Direito Penal priva-nos da responsabilidade inerentemente coletiva que emerge em todo conflito. Das vítimas, ofensores e coletividade é roubada a oportunidade de serem protagonistas e de se reinventarem neste papel. Isso faz eco à proibição e roubo da língua-perdão.

Quero dizer que a cadeia brasileira alguma faz o preso sentir ou pensar o ofensor e a dor de sua vítima. A ideia de que a pena/punição paga o crime só é possível na fantasia onipotente e de gozo perverso da vítima, que vai na equivocada perspectiva de que o ofensor sente sua dor e que, por ela, estarão ligados em justiça. Ora como a vítima, o condenado pensa e sente tão somente sua própria dor, e só sentirão/saberão da dor do outro se lhe forem reservadas condições seguras para se encararem e se deslocarem intersubjetivamente no campo linguístico: antes vítima e antes ofensor; agora e depois, outra coisa.

Portanto me engajei na pesquisa da Justiça Restaurativa, pois entendi que a via restaurativa supera a via tradicional em todos os seus princípios. Trata-se de uma forma de fazer justiça específica, individualizada, partilhada, segura, horizontal e extremamente subversiva, provocando profundamente as bases judiciais de nossa cultura. Ao final, será como comparar a pesquisa médica atual com os métodos medievais do século XII, quando eram proibidos exumações e estudos práticos de anatomia em corpos humanos. Nosso judiciário é profundamente atomista, como a medicina de outrora, que proíbe a dissecação tão só e unicamente na fundação de um discurso de ordem moral.

CDHEP: Você identifica conceitos centrais no processo formativo para a Justiça Restaurativa? Victor: Penso conceitos mais como princípios, sendo o primeiro uma necessária vinculação de natureza transferencial, ou seja, a constituição de um campo de linguagem possível entre os atores. Talvez o melhor método para o que chamaria de disposição de setting restaurativo – conjunto de objetos e relações que resguardam mínima estabilidade e segurança ao processo analítico – seja a proposta por Kay Pranis, de utilizar ao menos metade do tempo de “sessão” restaurativa para a contação de histórias de si, que não façam (ainda) referência direita ao conflito, mas à memória das pessoas, produção coletiva necessária para tornar a identificação entre elas possível e seu vínculo inescapável. O segundo seria a condição da verdade como produto coletivo e em porvir (incompleta e em transformação), nunca uníssona. Isso porque a história única só nos entrega paradoxos. A história, assim como a linguagem, é fruto de uma tradição e de uma transmissão coletiva. Ninguém aprende nada sozinho. Na Justiça Restaurativa, quanto melhor se preparar a plataforma do vínculo, melhor se produzirá a verdade como corpo que, pelo conflito e violência, desafia – na linguagem – a coexistência das pulsões. O terceiro é o órgão da promessa, que se constitui de operações que ligam expressões a reconhecimentos, necessidades a responsabilidades individuais e coletivas e memórias ao futuro do grupo. Novamente a dissolução traumática se vale das produções polissêmicas de testemunho, da partilha de uma herança indigesta e sua contraparte de escuta; também de reparação/indenização, gesto espontâneo de assimilar dores específicas do outro e aliviá-la com o que lhe faça substituição à perda; e um significado, algo que opera o sujeito e o futuro de todos para fora de si (do passado violento), construção simbólica que nos lança para a garantia da não repetição.

CDHEP: A partir da sua experiência profissional, quais as possibilidades que visualiza para a Justiça Restaurativa em uma perspectiva futura?

Victor: O momento histórico é de embate, de usar os métodos restaurativos o quanto possível para verificar sua precedência, pondo-a a frente e consagrando a punição como a alternativa, não o contrário. Façamos o enfrentamento de temas tabus: violência doméstica e machismo, racismo, xenofobia, homofobia, etc. A disputa cultural da Justiça Restaurativa tem maior sucesso pela juventude, o que favorece estes temas. A juventude é e sempre será o alvo privilegiado de práticas abusivas de repressão. O mercado e a indústria cultural disputam ideologicamente a juventude através da propaganda, impondo uma lógica de consumo simbólico. Esse campo é violento por sua ação individualizante, unívoca, disruptiva e massificante. Como educadores, devemos nos posicionar diante destes abusos e oferecer-lhes a segurança das dúvidas, de que viver é estar incerto; que a construção de espaços inclusivos faz mais pela democracia, que a justiça de hoje é fruto de um tempo histórico que não deve durar. Será a nossa medida de responsabilidade a indicar um caminho sóbrio e seguro às próximas gerações. Os dados já estão lançados e muitos juízes têm percebido isso, que tanta injustiça não passa despercebida. Penso no futuro com muitas saídas, muitas justiças, cada país ou região adotando um método que anteceda os tribunais penais. Penso que o debate metodológico está em disputa nos limites, isto é, no novo ritmo, nas condições ideais e na coragem em libertarmo-nos do passado, e nisso o perdão é um belo horizonte de eventos. Entendo ter sido este o resultado da minha formação para além do divã: pensar a violência praticada pelo Estado, por forças policiais, pelas instituições que privam liberdades, mas também pensar a negligência do poder público em ações que afirmem direitos a população, aquela que não tem acesso à justiça de outros modos. Penso que isso deva fazer parte da formação da própria ideia de sociedade brasileira. Com efeito, este é o impacto da formação em Fundamentos de Justiça Restaurativa do CDHEP: pensar o lugar da memória, do testemunho e do coletivo horizontalizado, e isto teve em mim um impacto político tão importante quanto o meu processo analítico.

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